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Associação de Antigos Amadores de Recitais de Guerra e Holocausto

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É necessário, agora, abordar o "caso Faurisson"...

 

 

A reputação incômoda de Chomsky

Jean Bricmont*


Chomsky é um racionalista, no sentido clássico do termo. Não se coloca acima dos conflitos raros intelectuais são mais engajados que ele , mas sua luta baseia-se em princípios como a verdade e a justiça, e não no apoio a um grupo histórico ou social.

O New York Times, que não gosta muito de Noam Chomsky (o que é recíproco), admite, apesar de tudo, que ele está entre os maiores intelectuais vivos. Excetuando os departamentos de Lingüística, no entanto, Chomsky continua desconhecido na França.

Quando seu nome é lembrado, na maioria das vezes é para ser associado aos de Robert Faurisson ou Pol Pot. Chomsky seria o modelo do intelectual que passa o tempo minimizando ou negando diversos genocídios cuja evocação poderia servir ao imperialismo ocidental. Só encontrou, aliás, um editor marginal, Spartacus, para publicar, em 1984, suas Réponses inédites à mes détracteurs parisiens (Respostas inéditas a meus críticos parisienses), compilação de cartas e de uma entrevista, não publicadas ou truncadas, e destinadas a jornais como Le Monde, Le Matin de Paris, Les Nouvelles littéraires, para responder, entre outros, a ataques de Jacques Attali e de Bernard-Henri Lévy. Daí a importância da publicação recente de alguns de seus textos.

Contra-ofensiva política e ideológica

Durante a guerra do Vietnã, os escritos de Chomsky tinham uma certa audiência na França. Mas, já nessa época, um mal-entendido implícito começava a surgir. Nos movimentos anti-imperialistas predominava uma mentalidade de "tomar partido". Era preciso escolher: ser pró-Ocidente ou pró-revoluções nacionalistas do Terceiro Mundo. Tal atitude é estranha a Chomsky, racionalista no sentido clássico do termo. Não que ele se coloque acima dos conflitos são raros os intelectuais mais engajados do que ele , mas seu engajamento baseia-se em princípios como a verdade e a justiça, e não no apoio a um grupo histórico e social, qualquer que ele seja. Sua oposição à guerra não decorria da previsão de que a revolução vietnamita iria dar um futuro radioso aos povos da Indochina, mas da observação que a agressão norte-americana seria catastrófica porque, longe de ser motivada pela defesa da democracia, visava a impedir qualquer forma de desenvolvimento independente na Indochina e no Terceiro Mundo. Por serem rigorosos, os escritos de Chomsky davam aos opositores da guerra do Vietnã instrumentos intelectuais preciosos; a diferença de ótica entre ele e seus seguidores na França podia então ser vista como secundária. A contra-ofensiva política e ideológica se desencadeou quando, a partir de 1975, os boat people começaram a fugir do Vietnã e, mais ainda, quando os Khmers vermelhos cometeram os massacres. Um mecanismo de culpabilidade daqueles que se tinham oposto à guerra ocidental, e de forma mais geral, ao imperialismo, permitiu imputar a eles a responsabilidade por esses acontecimentos. Mas, como observaria Chomsky, censurar os adversários da invasão do Afeganistão pela URSS em 1979 pelas atrocidades cometidas pelos rebeldes afegãos a partir da retirada das tropas soviéticas não seria menos absurdo: opondo-se à invasão, queriam impedir uma catástrofe cuja responsabilidade cabia aos que tomaram a decisão de invadir, não aos adversários. Quase que banal, um argumento desse tipo é pouco aceito no campo pró-Ocidente.

Um anacronismo estranho e perigoso

Na França, essa mentalidade de tomar partido já havia conduzido muitos opositores das guerras coloniais a ter ilusões sobre a possibilidade de um futuro radioso nas sociedades descolonizadas. Isso tornou o processo de culpabilidade ainda mais eficaz na medida em que o final da guerra do Vietnã coincidiu com a grande virada da intelligentsia francesa, que iria levar esta última a se afastar do marxismo e das revoluções do Terceiro Mundo e, progressivamente, com o movimento dos "novos filósofos", a adotar posições favoráveis à política ocidental no Chade e na Nicarágua. Uma boa parte dos intelectuais franceses, sobretudo os da geração "sessenta e oito", inicialmente passiva na luta contra os euro-mísseis (1982-1983), tornou-se francamente belicista no momento da Guerra do Golfo, e depois, quando da intervenção da Otan no Kosovo.

Não tendo nunca ilusões a perder, Noam Chomsky não tinha que renegar combate algum. Continuou, portanto, na vanguarda da luta contra as intervenções militares e os boicotes que, da América Central ao Iraque, provocaram centenas de milhares de vítimas. Mas para aqueles que tinham realizado a grande virada, Chomsky tornava-se um anacronismo estranho e perigoso. Como podia ele não ter compreendido que a posição correta era agora a do Ocidente, a dos direitos humanos? E a incorreta, a da "barbárie com feições humanas", inclusive países socialistas e ditaduras pós-coloniais?

Um curioso dualismo

O estudo de seu procedimento intelectual permite chegar a uma resposta. Uma boa parte da obra de Chomsky é dedicada à análise dos mecanismos ideológicos das sociedades ocidentais. Quando um historiador estuda o Império romano, tenta relacionar as ações dos dirigentes da época aos seus interesses econômicos e políticos, ou pelo menos à percepção que tais dirigentes teriam deles. Em vez de se limitar só às intenções explicitadas pelos dirigentes, o historiador deixa clara a estrutura "oculta" da sociedade (relações de poder, contingências institucionais) para decifrar o discurso oficial. Esse procedimento é tão natural que nem é preciso justificá-lo. Foi aplicado a sociedades como a União Soviética de ontem, à China e ao Irã de hoje. Nenhum especialista sério explicaria o comportamento dos dirigentes desses países privilegiando as motivações que apresentam para justificar suas ações. Essa atitude metodológica geral muda completamente quando se trata das sociedades ocidentais. Torna-se, então, quase obrigatório aceitar que as intenções explicitadas pelos governantes são o móvel de suas ações. Pode-se duvidar de sua capacidade em atingir os objetivos, de sua inteligência. Mas questionar a pureza de suas motivações, procurar explicar suas ações por contingências impostas por atores mais poderosos acaba sendo muitas vezes uma forma de se excluir do discurso "respeitável". Por exemplo, quando da guerra do Kosovo, os meios e a estratégia posta em prática pela Otan puderam ser questionados, mas não a idéia de que se tratava de uma guerra humanitária. Os meios utilizados pelos Estados Unidos na América Central na década de 80 foram criticados, mas raramente se duvidou que queriam proteger esses países da ameaça soviética ou cubana. O argumento que motiva esse estranho dualismo na abordagem dos fenômenos políticos é que nossas sociedades são "realmente diferentes", tanto das sociedades antigas como de países como a URSS ou a China, porque nossos governos estariam "realmente" preocupados com os direitos do indivíduo e com a democracia.

Uma comparação incômoda

Mas o fato de que os princípios democráticos sejam muitas vezes mais respeitados "em nossos países" do que em outros lugares, não impede de forma alguma a avaliação empírica da tese da singularidade ocidental. Pode-se chegar a isso comparando duas tragédias (guerra, fome, atentados etc.) mais ou menos semelhantes, e observando a reação de nossos governos e dos meios de comunicação. Ora, quando a responsabilidade por essas situações é imputável aos nossos inimigos, a indignação é geral, e a apresentação, desprovida da menor indulgência. Por outro lado, se a responsabilidade dos governos ocidentais ou de seus aliados está comprometida, os horrores são freqüentemente minimizados. Entretanto, se as ações de nossos governos fossem realmente motivadas pelas intenções altruístas que declaram, eles deveriam inicialmente agir nas tragédias de que são responsáveis, em vez de dar prioridade às que podem ser atribuídas a seus inimigos. Constatar que ocorre quase sistematicamente o

inverso autoriza a levar em conta a acusação de hipocrisia. Uma boa parte da obra de Chomsky é dedicada a comparações desse tipo. As conclusões que daí se depreendem não são elogiosas para os governos ocidentais nem para a maneira pela qual os meios de comunicação apresentam a sua ação.

No caso específico da Indochina e do Camboja, os escritos de Chomsky, muitas vezes apresentados como uma "defesa de Pol Pot", procuraram comparar as reações dos governos e dos meios de comunicação ocidentais diante de duas atrocidades quase simultâneas: os massacres dos Khmers vermelhos, no Camboja, e os dos indonésios, por ocasião da invasão do Timor Leste.

A recusa da atitude hipócrita

Quanto ao Camboja, a indignação foi grande assim como hipócrita.1 Por outro lado, no momento da ação militar indonésia, os meios de comunicação e os intelectuais mais badalados mantiveram um silêncio quase completo, enquanto os Estados Unidos e seus aliados, entre os quais a França, entregavam à Indonésia armas, sabendo que seriam usadas no Timor.2 Estabelecer a longa lista das não-indignações desse tipo obrigaria a voltar a falar da Turquia e os curdos, de Israel e os palestinos, sem esquecer do Iraque onde, em nome do direito internacional, foram abandonadas à morte lenta várias centenas de milhares de pessoas.

Com esse tipo de comparações, Chomsky adotou o contrário da mentalidade de tomar partido, especialmente acusada a partir da grande virada: já que o Bem (o Ocidente e seus aliados) enfrentavam o Mal (os nacionalismos do Terceiro Mundo e os países ditos socialistas), a analogia foi proibida. Ora, Chomsky fez pior. Recusando-se a adotar a atitude hipócrita que censura em nossos governantes e em nossos meios de comunicação, sempre considerou que deveria, em primeiro lugar, denunciar os crimes dos governos sobre os quais poderia esperar agir.

Em defesa da liberdade de expressão

Mesmo que em seu procedimento não entrasse nenhuma ilusão a respeito dos regimes "revolucionários" ou a absolvição de crimes cometidos por "outros", era quase inevitável que aqueles mesmos que haviam mantido tais ilusões, e aceito tais absolvições, o acusassem de cair nos mesmos erros deles. Pode-se compreender a reação de uma parte da intelligentsia francesa, preocupada em queimar o que adorou e a adorar o que queimou e, naturalmente, desejosa de se vingar nas costas dos outros dos erros que outrora havia cometido. Por vezes, Chomsky ficou mais irritado do que divertido com isso.

É necessário, agora, abordar o "caso Faurisson", que dá sustentação aos ataques franceses mais virulentos contra Chomsky. Professor de literatura na Universidade de Lyon, Robert Faurisson foi suspenso de suas funções no final da década de 70, e perseguido, porque havia, entre outras coisas, negado a existência de câmaras de gás durante a Segunda Guerra mundial. Uma petição para defender sua liberdade de expressão foi assinada por mais de quinhentas pessoas, entre as quais Chomsky. Para responder às reações violentas suscitadas por seu gesto, Chomsky redigiu então um texto curto no qual explicava que reconhecer a uma pessoa o direito de expressar suas opiniões não queria dizer de forma alguma que se concordava com elas. Elementar nos Estados Unidos, tal distinção pareceu dificilmente compreensível na França.

Um ato de autodefesa

Mas Chomsky cometeu um erro, o único nesse caso. Deu esse texto a um amigo da época, Serge Thion, permitindo-lhe que o usasse como quisesse. Ora, Thion o publicou, como "opinião", no início do relatório de defesa de Faurisson. Chomsky insistiu em notar que nunca havia tido a intenção de ver publicado seu texto nessa situação e que tentou, embora fosse tarde demais, impedir a publicação.

Condenar Chomsky nesse caso obriga, no mínimo, a dizer aquilo que justamente se reprova: um erro tático ou o próprio princípio da defesa incondicional da liberdade de expressão? No segundo caso, é preciso então indicar que a França não possui, em matéria de expressão de opiniões, a tradição libertária dos Estados Unidos. Ali, a posição de Chomsky não choca quase ninguém. Equivalente à Liga dos Direitos do Homem, a American Civil Liberties Union, na qual militam inúmeros antifascistas, entra nos tribunais com uma ação criminal se forem proibidos de se manifestarem a Ku Klux Klan ou grupos nazistas, mesmo que estejam uniformizados em bairros de maioria negra ou judia...3 O debate a esse respeito opõe, portanto, duas tradições políticas diferentes: uma que predomina na França, outra nos Estados Unidos, e não um Noam Chomsky representante de uma extrema-esquerda sem rumo diante de uma França republicana.

Num mundo em que batalhões de intelectuais disciplinados e meios de comunicação submissos servem de sacerdócio secular para os poderosos, ler Chomsky significa um ato de autodefesa. Pode permitir evitar as falsas evidências e indignações seletivas do discurso dominante. Mas ensina também que, para mudar o mundo, deve-se compreendê-lo de maneira objetiva e que há uma grande diferença entre romantismo revolucionário que muitas vezes faz mais mal do que bem e crítica social simultaneamente radical e racional. Depois de anos de desesperança e de resignação, uma contestação global do sistema capitalista parece renascer. Tal contestação só pode tirar proveito da combinação de lucidez, de coragem e de otimismo que marcam a obra e a vida de Noam Chomsky.


Traduzido por Regina Salgado Campos

* Professor na Universidade de Louvain, Bélgica. Este texto é a versão reduzida do prefácio de uma coletânea de textos de Noam Chomsky De la guerre comme politique étrangère des États Unis, Ed. Agone, Marselha.

1. Quando, em 1979, os vietnamitas deram fim ao regime de Pol Pot, os ocidentais decidiram apoiar os Khmers vermelhos diplomaticamente, através da ONU, mas também, indiretamente, no plano militar. Pelo contrário, no caso da Indonésia, simples pressões ocidentais provavelmente teriam sido suficientes para deter os massacres.

2. Ministro francês das Relações Exteriores, Louis de Guiringaud, foi a Jacarta para assinar um acordo militar. Depois declarou que a França não colocaria a Indonésia numa situação embaraçosa nas Nações Unidas quanto ao Timor. Le Monde, 14 de setembro de 1978.

3. Foi o que ocorreu em Skokie (Illinois) em 1978.


Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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